Nutricídio: quando a alimentação se torna instrumento de desigualdade
O que é nutricídio e por que precisamos falar disso agora
O termo nutricídio descreve um fenômeno grave: a destruição da saúde de povos negros, indígenas e periféricos por meio da imposição de dietas precárias, alimentos de baixa qualidade e políticas públicas que limitam o acesso à comida de verdade. Não é apenas um problema nutricional, é social, histórico e político.
No Brasil, a dimensão desse processo fica evidente quando olhamos para as raízes da desigualdade. Após séculos de escravidão, a população negra foi “liberta” sem reparação histórica, sem acesso à terra, educação, trabalho digno ou moradia. Sem condições de sobrevivência, milhões de pessoas foram empurradas para regiões periféricas com pouca infraestrutura, o que deu origem às favelas e comunidades.
Hoje, nesses territórios, onde a maioria da população é negra, parda e pobre, ainda faltam saneamento básico, mobilidade, serviços públicos e acesso contínuo a alimentos frescos e nutritivos. Ambientes de vulnerabilidade, somados à ausência do Estado, se tornam terreno fértil para múltiplas violências, incluindo o nutricídio.
E aqui entra um ponto central:
A fome, a insegurança alimentar e a má alimentação não são acidentes — são resultado de escolhas políticas.
Como dizia Josué de Castro, “a fome é um projeto”. O nutricídio é uma de suas expressões.

Nutricídio, biopoder e necropolítica: quando a comida se torna forma de controle
Michel Foucault descreveu o conceito de biopoder, o controle da vida por meio da gestão dos corpos e da saúde. Quando populações inteiras são empurradas para dietas ultraprocessadas, contaminadas por agrotóxicos ou pobres em nutrientes, o Estado e instituições exercem controle direto sobre quem vive com saúde e quem adoece.
Achille Mbembe amplia essa ideia com a necropolítica, que analisa como certas populações são expostas a condições que reduzem sua expectativa de vida.
Nas periferias brasileiras, isso se traduz em:
O nutricídio é isso: uma forma silenciosa de violência estrutural.
Epistemicídio alimentar: quando saberes tradicionais são apagados
Além da desigualdade no acesso à comida, há outra camada do problema: o epistemicídio, o apagamento de saberes ancestrais.
A colonização substituiu culturas alimentares indígenas, africanas e quilombolas por modelos agrícolas lucrativos e destrutivos. Sementes nativas foram abandonadas, a agricultura familiar perdeu território, técnicas de cultivo foram deslegitimadas e os alimentos industrializados passaram a ocupar o cotidiano das famílias.
Ao destruir o conhecimento sobre plantar, colher, cozinhar e cuidar da terra, o sistema criou dependência da indústria e aprofundou o nutricídio.
Ultraprocessados, agrotóxicos e desigualdade: como o Brasil vive o nutricídio hoje
O padrão alimentar brasileiro atual é marcado por dois extremos:
Esse cenário é reforçado por políticas agrícolas que beneficiam monoculturas de exportação e ampliam o uso de agrotóxicos. Segundo o Atlas dos Agrotóxicos (2023), o Brasil registra milhares de intoxicações todos os anos muitas não notificadas atingindo principalmente:
O resultado é uma alimentação tóxica, insuficiente e desigual.
Globalização e o apagamento das culturas alimentares brasileiras
A globalização fortaleceu a indústria de ultraprocessados e pressionou ainda mais a agricultura tradicional. Com isso, alimentos locais e sazonais foram substituídos por produtos industrializados e homogêneos.
Milton Santos chama isso de globalização como fábula, pois beneficia poucos e aprofunda desigualdades.
O Brasil vive esse paradoxo: uma das maiores biodiversidades do mundo, ao mesmo tempo em que perde autonomia alimentar e cultural.
Casos de biopirataria da flora da Mata Atlântica, com patentes registradas em outros países, são exemplos claros dessa perda de soberania.

O Brasil é potência agrícola — e ainda assim a fome cresce
Outro paradoxo:
O Brasil é um dos maiores produtores de soja, milho, carne e açúcar do planeta. Mas boa parte dessa produção é destinada à exportação, e não ao abastecimento interno.
Assim, convivemos com:
Ou seja: produzimos toneladas de comida, mas não alimentos para nutrir a população brasileira.
O recorte de gênero: por que as mulheres negras são as mais afetadas
Segundo o IBGE, mais de 41 milhões de domicílios brasileiros têm mulheres como principais provedoras, a maioria mulheres negras.
Esse grupo enfrenta:
Entender nutricídio é entender gênero, raça e classe de forma interligada.
Como combater o nutricídio? Caminhos possíveis
Enfrentar o nutricídio exige uma mudança estrutural, mas também ações comunitárias e educativas. Alguns caminhos incluem:
1. Fortalecer a agricultura familiar, comunitária e agroecológica
São essas agriculturas que produzem alimentos diversos, nutritivos e livres de venenos.
2. Resgatar saberes ancestrais
Plantio agroecológico, uso de PANCs, culinária tradicional, sementes crioulas — tudo isso é patrimônio cultural e alimentar.
3. Garantir acesso universal à alimentação saudável
Comida de verdade é um direito humano, não um privilégio.
4. Reduzir o uso de agrotóxicos e a dependência de ultraprocessados
Políticas públicas precisam colocar a vida no centro, não o lucro de grandes corporações.
Como o Prato Verde Sustentável atua na prática contra o nutricídio
O Prato Verde nasce justamente onde o nutricídio se faz mais presente: na periferia de São Paulo e em territórios vulneráveis do Distrito Federal.
A ONG atua transformando realidades por meio de:
Hortas agroecológicas comunitárias
Recuperando áreas degradadas e produzindo alimentos frescos, diversos e nutritivos.
Educação ambiental e alimentar
Oficinas, trilhas, vivências e formações que reconectam a comunidade à terra e ao direito à boa alimentação.
Geração de renda e empregos verdes
São 54 colaboradores, majoritariamente pessoas negras, fortalecendo a economia local e rompendo ciclos de exclusão.
Projetos para juventude e grupos vulneráveis
GEAMA, juventudes, oficinas socioemocionais, gastronomia periférica, iniciativas que unem cuidado, pertencimento e autonomia.
O Prato Verde mostra que alimentação saudável é instrumento de justiça social.
Reconstruir o futuro passa por reconstruir a forma como nos alimentamos
Nutricídio não é apenas uma ideia teórica. Ele está presente no cotidiano das periferias, nos preços dos alimentos, na falta de políticas públicas, na violência ambiental e no apagamento de culturas.
Mas também existem caminhos de resistência.
Quando comunidades resgatam saberes, cuidam da terra, produzem seu próprio alimento e se tornam protagonistas das soluções, um novo futuro começa a nascer mais justo, mais saudável, mais humano.
E o Prato Verde Sustentável é prova viva disso.